Curso de Letras – Semântica
“O mistério da idéia incorporada à matéria fônica, o mistério da palavra, do símbolo lingüístico, do Logos, um mistério que pede para ser elucidado” Roman Jakobson
Situando a questão semântica em uma breve história dos estudos da linguagemA complexidade do fenômeno lingüístico há muito desafia a compreensão do homem em diferentes locais e épocas. Vamos traçar, brevemente, a história da construção desse saber metalingüístico, enfatizando a problemática do significado, objeto dos estudos semânticos.
1. IV a.C - Remontam ao século IV os primeiros estudos. Razões religiosas levaram os hindus a estudarem sua língua – o Sânscrito – para que os textos reunidos nos Vedas não sofressem modificação no momento de serem proferidos. Mais tarde, os gramáticos hindus, entre os quais Panini (séc. IV a. C.) dedicaram-se a descrever minuciosamente sua língua, produzindo modelos, principalmente em fonética, que foram descobertos pelo ocidente no final do século XIX.
2. IV/V a.C - A história registrada da lingüística ocidental começa com um confronto entre duas visões da língua fundamentalmente opostas: a língua como fonte de conhecimento e a língua como um simples meio de comunicação. Os gregos preocupavam-se, principalmente, em definir as relações entre o conceito e a palavra que o designa, ou seja, tentavam responder à pergunta: haverá uma relação necessária entre a palavra e seu significado? A língua tem algum vínculo direto e essencial com a realidade, espiritual ou física, ou é puramente arbitrária? As implicações são consideráveis: se a língua contém ou espelha a realidade, então o estudo da língua é um caminho para o conhecimento da realidade. Mas, se é arbitrária, então nada de maior importância pode ser obtido com seu estudo, assim, o objeto de estudo será o entendimento da linguagem e nada mais. O primeiro texto ocidental sobre a linguagem, o Crátilo, de Platão, trata dessa questão. Dos três interlocutores retratados, Crátilo sustenta que a língua espelha exatamente o mundo; Hermógenes defende a posição contrária, a de que a língua é arbitrária, e Sócrates representa a instância intermediária, ressaltando tanto os pontos fortes quanto as fraquezas dos argumentos dos outros dois, buscando levá-los a uma solução conciliatória. A afirmação inicial de Hermógenes de que os nomes são inteiramente arbitrários e podem ser impostos à vontade é refutada por Sócrates, que assinala que as palavras são ferramentas, assim como uma lançadeira defeituosa não pode ser usada para tecer, também as palavras precisam ter propriedades que as tornem apropriadas ao uso. Pede então a Hermógenes que faça duas suposições: a de que as palavras são corretas, pois do contrário não cumpririam sua função; e a de que, tendo surgido por convenção, elas devem ter sido inventadas por alguém, humano ou divino: o nomoteta (“legislador”). A correção natural dos nomes, contestada por Hermógenes, é ilustrada por Sócrates numa série etimológica baseada em associação semântica. Por exemplo, o corpo (soma) é assim chamado porque é o túmulo (sema) ou sinal (também sema) da alma, enquanto relâmpago (astrapê) é assim chamado porque atrai nosso olhar para o alto (ta opa anatréphei). Pouco a pouco, Platão leva o leitor a se dar conta de que há elemento de verdade em ambas as posições. Embora muitas palavras possuam uma correção intrínseca, de acordo com a phýsis, aquelas palavras em que tal estrutura natural não pode ser detectada são entendidas por convenção, thései.
Uma vez que já fora aceito que a conexão entre palavras e coisas não era direta, mas indireta, ainda faltava determinar a natureza exata desse relacionamento. Aristóteles delineou um processo em três etapas: os signos escritos representam os signos falados; os signos falados representam impressões na alma; e as impressões na alma são a aparência das coisas reais. As impressões e as coisas são, segundo Aristóteles, as mesmas para todos os homens, ao passo que diferem as palavras que representam as interpretações. Esse esquema levantou dificuldades. Os estóicos (séculos III-II a.C) e outros autores a seguir, preferiram acrescentar uma etapa entre a recepção passiva da impressão e a fala: o conceito, uma noção que pode ser verbalizada. Assim, embora todos os homens possam receber as mesmas impressões das coisas que percebem, os conceitos que eles formam dessas impressões diferem, e são eles que são representados na fala.
Tentando proceder a uma análise precisa da estrutura lingüística, Aristóteles chegou a elaborar uma teoria da frase, distinguindo as partes do discurso e a enumerar as categorias gramaticais. Desenvolveu estudos sobre o silogismo, destacando as relações lógicas entre as sentenças. Escreveu uma Poética, uma Retórica, um livro de Dialética (os Tópicos) e dois tratados de Lógica (Analíticas I e II), além de duas obras introdutórias sobre a linguagem e o pensamento em geral (Categorias e Da Interpretação). Enxerga-se aí uma teoria denominada por alguns estudiosos de Teoria dos Quatro Discursos, a qual. pode ser resumida em uma frase: o discurso humano é uma potência única, que se atualiza de quatro maneiras diversas: a poética, a retórica, a dialética e a analítica (lógica).
Etimologicamente falando, o termo gramática (do grego grammatiké, gramma “letra” + tékhne “arte”]) surge na Grécia entre os séculos V-IV a. C., para designar a técnica das letras da escrita alfabética grega.
A gramática grega conheceu sua codificação na gramática de autoria atribuída a Dionísio Trácio (Tékhné Grammatiké, II a. C.), a primeira gramática do Ocidente, seguida de Apolónio Díscolo (Sintaxis, século I), ambas respondem pela codificação gramatical como forma de resolver problemas filológicos das obras homéricas e protegê-las da mudança lingüística. Deste modo, gramática e filologia confundidas passam a ser a exegese dos textos clássicos da literatura.
3. Transição para a Era Cristã: Dentre os latinos, destaca-se Varrão. Nas porções remanescentes de sua obra De língua latina, estabelece dicotomias problemáticas: o papel da natureza e da convenção na origem das palavras, e a questão da analogia e da anomalia na regulação do discurso. Tal com o Platão, Varrão conclui que o significado original das palavras, imposto em concordância com a natureza, foi obscurecido em diversos casos pela passagem do tempo, e que a etimologia pode freqüentemente ajudar a recuperar o significado verdadeiro e original. Por etimologia, Varrão entende um tipo de explicação semântica, em vez da explicação fonológica da etimologia histórica a que estamos acostumados. São pouquíssimas as gramáticas do período entre Varrão e Quintiliano que sobreviveram até nós. A educação romana sob o Império era destinada à formação de oradores. Depois de se alfabetizar com o litterator ou magister ludi, as crianças estudavam gramática e aplicavam-na à análise de textos literários sob a tutela do grammaticus , e finalmente eram guiadas pelo rhetor na composição de discursos elegantes. Diversos grammatici compilaram seus próprios manuais de ensino. Uma obra típica, a Ars maior de Donato (350 d.C.) era dividida em três livros: I. vox (voz, som substância fônica); litterae (som da fala, letra), sílaba, acentos e pontuação; II. partes do discurso: nome, pronome, verbo, advérbio, particípio, conjunção, preposição e interjeição; III. apresentava os barbarismos (erros na forma das palavras), solecismos (colocações erradas das palavras), e várias figuras de retórica. Sob vários aspectos, o conteúdo de uma gramática antiga não é diferente do de uma gramática da língua materna atual.
4. Idade Média – É na tradição latina que devemos buscar a corrente dominante do pensamento lingüístico medieval, pois o latim era a língua da intelectualidade e da erudição – a língua internacional que unia todos os cristãos letrados. Na teoria, o grego e o hebraico possuíam o mesmo status do latim, reverenciados como as “três línguas sagradas” inscritas na cruz de Cristo. A distinção entre grammatica speculativa e grammatica positiva correspondia, grosso modo, à divisão entre ciência e tecnologia. No final do século XII, há um impulso ao estudo do aspecto universal da linguagem. À medida que as obras de Aristóteles até então inacessíveis entravam em circulação, a partir de 1140, os estudiosos experimentaram as novas idéias em cada um dos ramos tradicionais do conhecimento. Com a Metafísica e outras obras, eles aprenderam a questionar a própria natureza das disciplinas tradicionais. Aristóteles tinha oposto as disciplinas especulativas (ou teóricas) às habilidades práticas. “O objetivo do conhecimento teórico é a verdade, enquanto o do conhecimento prático é a eficácia.” Assim, o arquiteto entende os princípios subjacentes ao desenho dos edifícios, ao passo que o construtor simplesmente possui o conhecimento técnico relativo à mistura da argamassa. Essa dicotomia entre ramos práticos e teóricos foi estendida à linguagem. A grammatica speculativa investigava os princípios universais da gramática, enquanto a grammatica positiva se preocupava com detalhes de uma língua particular. Os mais conhecidos adeptos da gramática especulativa foram os modistas (modistae), um pequeno grupo de eruditos em atividade na Universidade de Paris entre 1250 e 1320. Sua doutrina se baseava na noção dos modi significandi, “modos de significação”, que fornecia um arcabouço para se descrever o processo de verbalização. Na concepção modista, o objeto do mundo real, externo ao conhecimento humano, podia ser apreendido como um conceito pelo entendimento, e o conceito podia ser dado a conhecer por um signo falado, tornando-se um significado, res significata. As propriedades da res significata, seus modi significandi (diretamente derivados das propriedades do objeto no mundo real) serviam para diferenciar gramaticalmente as unidades semânticas (dictiones).
5. Século XVI – A religiosidade ativada pela Reforma provoca a tradução da Bíblia em numerosas línguas, apesar de manter-se o prestígio do latim como língua universal. Período das gramáticas vernáculas, os vernáculos europeus estavam se apoderando de áreas antes dominadas pelo latim: crônicas, estatutos eram registrados no dialeto local ou na recém-padronizada língua nacional (Antonio de Nebrija, autor da primeira gramática do espanhol, 1492, adoção da perspectiva derivacional; Fernão de Oliveira, autor da primeira gramática da língua portuguesa, 1536). Em 1502, surge o dicionário poliglota, marcado pelo interesse pelos aspectos que diferenciavam uma língua da outra no tocante à forma. O elemento semântico, a “alma” encarnada do “corpo” da palavra já não parecia tão interessante. Com a crescente consciência da diversidade de línguas, tornou-se urgente uma reavaliação entre as línguas. Descenderiam todas do hebraico, como se imaginou durante toda a Idade Média? Ou a língua original da humanidade teria se perdido na Babel? A etimologia, concentrando-se cada vez mais na comparação das formas do que na dos significados, tornou-se uma ferramenta para se provar uma hipótese depois da outra, e os autores se gabavam do número de línguas que tinham analisado para elucidar o vocabulário de seu próprio idioma.
6. Séculos XVII e XVIII – a Grammaire générale et raisonné (1660) de Claude Lancelot e Antoine Arnauld espelha o encontro da gramática particular coma filosofia. Demonstra que a linguagem se funda na razão e é a imagem do pensamento e que os princípios de análise estabelecida não se prendem a uma língua particular, mas servem a toda e qualquer língua. As operações mentais foram transformadas na base das distinções gramaticais. As três operações primárias– formar um conceito - “redondo”, fazer um julgamento como “a terra é redonda” e raciocinar – forneciam o arcabouço para distinguir as várias partes do discurso e para o estudo da sintaxe. Como essas operações e suas conseqüências lingüísticas são universais, elas podem ser exemplificadas por meio de qualquer língua, e o francês e o latim forneciam a maioria dos exemplos. Dessa maneira, a célebre análise da oração “Deus invisível criou o mundo visível” mostra como três proposições mentais distintas (que Deus é invisível, que Ele criou o mundo, e que o mundo é visível) estão incluídas nessa única proposição verbal. Tendo definido o verbo como uma palavra cujo uso principal é significar a afirmação – como em “o mundo é redondo”, os autores concluem que somente no verbo “ser” essa função se realizava em sua forma mais simples; outros verbos, “viver” por exemplo, são analisados como consistindo do verbo “ser” mais um atributo: “é vivente”. Esta análise é característica da análise lógica, em vez de gramatical do enunciado.
7. Século XIX – O conhecimento de um número maior de línguas vai provocar o interesse pelas línguas vivas, pelo estudo comparativo dos falares, em detrimento de um raciocínio mais abstrato sobre a linguagem. É o período das gramáticas comparadas e da Lingüística Histórica. O pensamento lingüístico contemporâneo formou-se a partir dos princípios metodológicos elaborados nessa época, mesmo que em novas bases. O estudo comparativo vai evidenciar que as línguas se transformam com o tempo, independente da vontade do homem, seguindo uma necessidade própria da língua e manifestando-se de forma regular. Franz Bopp é considerado o estudioso que se destaca nessa época. A publicação, em 1816, de uma obra sobre o sistema de conjugação do sânscrito, comparado ao grego, latim persa e ao germânico é considerado como marco do surgimento da Lingüística Histórica. A semelhança entre as línguas vai evidenciar uma relação de parentesco, constituindo, portanto, uma família, a indo-européia. O progresso ocorrido no século XIX foi acompanhado por uma descoberta fundamental que veio alterar o próprio objeto dos estudos da linguagem – a língua literária. Os estudiosos compreenderam que as mudanças ocorridas nos textos escritos poderiam ser explicadas por mudanças que teriam acontecido na língua falada. A lingüística moderna, embora também se ocupe da língua escrita, considera a prioridade da língua falada como um dos seus princípios fundamentais. Um dos marcos da constituição da Semântica disciplina lingüística é a obra “Ensaio de Semântica” de Michel Bréal (1897). O termo semântica foi inicialmente usado em um artigo de Bréal intitulado “Les lois intelectuelles du langage – fragment de semantique”, de 1883. De suas obras, importa destacar: i) as questões de significação não podem ser tratadas pela via etimológica, mas pela consideração de seu emprego; ii) é preciso considerar a palavra em sua relação com outras palavras, no conjunto do léxico, nas frases em que aparecem.
8. Século XX – A Lingüística passa a ser reconhecida como científica a partir da divulgação da obra de F. de Saussure – Cours de Linguistique Générale (1916). O trabalho científico consiste em observar e descrever os atos a partir de determinados pressupostos teóricos, ou seja, o lingüista aproxima-se dos fatos orientado por um quadro teórico específico. A distinção linguagem/língua/fala situa o objeto da Lingüística para Saussure. Para o mestre genebrino, “a lingüística tem por único objeto a língua considerada em si mesma e por si mesma”. A língua é um “sistema de signos” – um conjunto de unidades que se relacionam organizadamente dentro de um todo. Embora não haja menção ao termo dicotomia no texto do CLG, é assim que se costuma chamar os 4 pares de conceitos que fazem uma síntese das propostas de Saussure para a criação de um novo objeto teórico para a Lingüística. A palavra dicotomia provém do grego e quer dizer “divisão em partes iguais”. Uma dicotomia em Saussure diz respeito a um par de conceitos que devem ser definidos um em relação ao outro, de modo que um só faz sentido em relação ao outro. São 4 as “dicotomias”: sincronia X diacronia; língua X fala; paradigma X sintagma.
Em princípio, a definição de signo lingüístico parece simples. Saussure define signo como uma relação entre uma imagem acústica, que ele chamou significante, e um conceito que denominou significado. A definição de signo traz, porém implicações no que diz respeito ao estatuto da linguagem e a seu papel entre os fatos humanos. Pensa-se, comumente, que se vive em um mundo repleto de coisas e que nos referimos a elas com as palavras. Nessa concepção, há uma relação mais direta ente as palavras e coisas, de modo que a língua é entendida como uma nomenclatura. Com a definição de signo, Saussure demonstra que a relação não é esta, entre palavras e coisas, mas sim entre uma imagem acústica e um conceito, ou seja, entre significante e significado.
Isso implica que a língua não é uma nomenclatura, mas um princípio de classificação. Vejamos: se existe um mundo repleto de coisas e cabe à língua apenas nomeá-las, ela acaba por reduzir-se a um reflexo das coisas. Desse ponto de vista, a língua não tem domínio próprio, pois como um reflexo das coisas do mundo, é entendida apenas como uma coleção de nomes. No ponto de vista de Saussure isso não acontece. Ao afirmar que a relação é entre um significante e um significado, a relação entre as coisas do mundo e as palavras deixa de ser considerada na definição de língua. Um significante e um significado formam um signo que, por sua vez, é definido dentro de um sistema, ou seja, um signo ganha valor na relação com outros signos. Esse conceito traz a significação para dentro da língua e de sua estrutura. O que significa são os signos em suas relações com os outros signos e não a relação entre as palavras e as coisas. Se os signos significam dentro de um sistema lingüístico, esse sistema compreende uma visão do e mundo, ou seja, um principio de classificação que, projetando-se sobre as coisas do mundo, classifica-as de acordo com sua estrutura interna. Um conceito, ou seja, um significado é uma idéia que modela um determinado modo de compreender as coisas. Esse conceito deve, necessariamente, estar relacionado a um meio de expressá-lo. É preciso, então, relacionar o conceito a uma imagem acústica, ou seja, a um significante. Essa maneira de ver o mundo varia de língua para língua, já que cada uma delas é definida por um sistema próprio de signos.
Afirma-se assim que é a partir de uma língua que se vêem as coisas do mundo e ao não o contrário. Enquanto na concepção da língua como uma nomenclatura são as coisas do mundo que determinam as ‘’coisas’ da língua, na concepção da língua como um principio de classificação é a língua que determina as coisas do mundo.
É necessário distinguirmos entre semântica ditas objetivistas ou realistas, que postulam que há uma ordem no mundo que dá conteúdo à linguagem, e semânticas mais próximas do relativismo, que acreditam que não há ordem no mundo que seja dada independentemente da história da linguagem.
A reflexão sobre o significado, ao menos na lingüística, não se caracteriza como monolítica. Há varias maneiras de se estudar o significado, no Brasil, há três grandes orientações teóricas: Sem. Argumentativa, Sem. Cognitiva e a Sem. Formal. Elegemos a Semântica Formal por sua precedência sobre as outras. Ao seu estudo, portanto!
WEEDWOOD, B. História Concisa da Lingüística. São Paulo: Parábola Editorial, 2002 (compilação).